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sábado, 20 de abril de 2013

Crônica do Encontro com a Palma

   Todos sabem que, modéstia à parte, nasci em Santa Maria, mas me criei na Palma. A seguir a crônica que conta as sensações do piá que chegava à Fazenda Bom Retiro.
   Essa é a primeira de 47 crônicas do livro "Lembranças de Guri", que você pode encomendar, ligando para o autor, 9997-6269. R$ 10,00 para diversão garantia.




                   ÊXODO URBANO

 

         Até perto dos dois anos eu era tal e qual terneiro guaxo: sempre doente. Peste daqui, peste dali, todo o mundo achando que não vingava aquele corpo esquelético, encimado por uma baita cabeça, verdadeira abóbora, sempre caída para um lado.

 

         A teimosia do pesteado, porém, era grande e, chá disso, caldo daquilo, quando o pessoal se dá conta, o piazote está pegando viço e ameaça passar o agosto, mês do natalício da importante figura.

 

         Tão bem estava o dito, que até puderam pensar em levá-lo para a fazenda dos avós. E aqui vai um esclarecimento: a Fazenda Bom Retiro não era, propriamente,  dos avós, mas, isto sim, somente do Vovô, homem muito do corajoso, pois, quase aos oitenta anos, em terceiras núpcias casou com minha avó de sangue, que ainda não chegara aos cinqüenta. Tal casamento, por exigências legais e herdeirais, foi feito com separação total de bens. Fica claro, assim, que continuo pelado como vim o mundo, porque da tal fazenda só herdei  a saudade.

 

         Ele, o Vovô, chamava-se Donato Dornelles de Quadros e, ainda que sendo meu avô apenas por afinidade, nos adotamos mutuamente. Eu, porque não conhecera nenhum avô consangüíneo e ele, porque eu era o vivente humano mais novo da fazenda.

 

         Mas voltemos à minha ida para a campanha:

 

         Era um toco de sobreano quando me vi na rodoviária de Santa Maria, embarcando num ônibus da Empresa Maffini, rumo à Palma, umas duas léguas e meia antes de São Vicente do Sul, que por aquelas épocas se chamava General Vargas.

 

         O ônibus era um daqueles focinhudos,  Fargo ou coisa parecida, com bagageiro no toldo. Num tapa saiu da cidade e entrou na estrada, tentando desviar dos buracos, embalando nos lançantes para, gemendo, tentar a melhor contra as subidas.

 

         Tanto gemeu, tossiu e fez força que, lá pelas tantas, entregou a rapadura. Ficamos assim, no meio do campo, com um sol de rachar as idéias, esperando que o motorista, com seu boné preto, de quebra-sol envernizado, conseguisse pôr a geringonça a funcionar.

 

         Aquele calorão me deu uma baita sede. Abri os tarros. Minha irmã Maria, apenas nos seus doze anos, ficou sem saber o que fazer diante do meu berreiro, até que um senhor se ofereceu para procurar água em alguma casa. Caminhou um bocado até conseguir, mas, parece que adivinhando, foi ele apontar na curva com uma vasilha cheia de água fresquinha, recém tirada do poço e o motor, depois de muita furungação e xinga, deu sinal de vida.

 

         Tomei minha água e recomeçamos a gemedeira. Paramos na casa para devolver a vasilha e prosseguimos despachando terra, devagar, mas firmes.

 

         Chegamos a São Pedro do Sul. Tomei uma garrafa de Cyrillinha na Rodoviária e não me acalmei enquanto a Maria não comprou outra para levar junto até o fim da viagem. Sabia eu lá quando é que aquela gaiola gemedeira ia encrencar de novo?

 

         Heroicamente fomos avançando. Cada vez mais perto do destino. Eu, tentando de tudo quanto era jeito botar a cabeça para fora, o que se mostrou impossível por causa das grades nas janelas.

 

        

         Dê-lhe passar coxilha, sanga, gado, cavalos, peões e bolichos.

 

         Quase me borro de susto quando, de repente, me vejo nas alturas, olhando apavorado as águas que passavam lá embaixo. Era a ponte do rio Toropi.

 

         Mal atravessamos a Maria falou:

 

         - Aqui começa a fazenda.

 

         Apareceu uma reta em terras de várzea, quase uma légua. O fim dela dava numa subida em cujo topo ficava a Encruzilhada da Mata e o bolicho do Franchi. Mais umas quinhentas braças e vinha a entrada da Bom Retiro.

 

         Um próprio nos aguardava com um cavalo a cabresto.

 

         Fui colocado na montaria, à frente, segurado pela irmã, para evitar tombo.

 

         Teríamos que cavalgar mais ou menos um quarto de légua. Seguimos pelo corredor, passando pelas mal-assombradas tunas-rosa, onde, diziam, um tropeiro morrera crivado de espinhos, numa disparada de cavalo. Muito sujeito valente não passava ali depois do Sol posto, pois a alma penada costumava dar umas incertas. Falavam também que carecia de se ter muito cuidado com os espinhos. Espinho de tuna, se não fosse tirado imediatamente e por inteiro, começava a andar pelo organismo do vivente, até alcançar o coração. Aí, adeus gaúcho.

 

         Como ainda era dia, passamos as tunas sem sermos molestados pelo fantasma-ouriço, atravessamos um matinho de maricás, rodeamos as mangueiras pelo lado do Minuano e chegamos.

 

         O que mais dava na vista, para quem chegava, era um enorme cinamomo. Atrás dele, a casa principal e, à esquerda desta, a Casa Velha, grudada à qual estava o galpão-do-fogo onde a peonada tomava mate, contava causos, arranhava um violão, peidava, e, às escondidas, bebia e jogava pife, porque o vovô Donato era adventista-do-sétimo-dia e não gostava de cachaça e jogatina. Pegados ao galpão-do-fogo vinham a carpintaria, o galpão dos jiraus e, finalmente, o de tirar leite, que estábulo não é palavra para gaúcho usar.

 

         Fiquei meio embasbacado com tudo aquilo, mas não prolonguei muito minha atenção porque a Cyrillinha não fora bebida ainda. O melhor a fazer, então, era amarrá-la dentro dum balde e deixar um bom tempo no poço, gelando.

 

         Depois da janta me deram a preciosa garrafa, o que foi um erro. Como estava cansado da viagem e de ver tanta novidade numa tocada só, fui dormir muito bem preparado para uma senhora mijada na cama.

 

         Que não falhou.

        

 

        

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