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domingo, 26 de agosto de 2012

A Longa Viagem da Maria Fumaça


A LONGA VIAGEM DA “MARIA-FUMAÇA”.




Com dois anos fizera a viagem de sua vida numa Maria-Fumaça, de Santa Maria a São Paulo.

Depois desta cansativa e deslumbrante aventura já viajara muito. Conhecera o Rio Grande de canto a canto, a pé, vendendo livros; de carro, fazendo propaganda junto a médicos; de avião, quando começara a trabalhar com fotografia aérea. Não fora a lugares muito distantes, mas passara um bom tempo da existência cruzando mundo; entretanto, nem as viagens já feitas, nem qualquer outra, por mais longa ou charmosa que venha a ser, conseguirão roubar o lugar daquela aventura fumacenta.

Sua terra, Santa Maria, era cortada pelos constantes apitos do Fronteira, do Serra e do Paulista, chegando ou saindo. Mesmo na fazenda, lá na Palma, distrito de São Vicente, em dias calmos era de se ouvir os apitos na Estação da Mata e no rumo de Taquarixim, com o eco repetindo-se pelos cerros.

E a fumaça do trem subia, mostrando exatamente onde iam as pessoas mais felizes do mundo. Mas feliz, feliz mesmo, era o maquinista, um homem super-importante, que tinha nas mãos o poder de fazer aquele monstro andar, levando cargas, pessoas e bichos através de campos, cerros e rios. Isso todos os dias, sem pagar passagem e, por cima, ganhando salário. Ele, o guri, de tanto que gostaria de ser um maquinista, trabalharia de graça, só pelo gosto, como diziam os da campanha.

De trem fora a Uruguaiana, sendo um dos privilegiados passageiros a usufruírem da primeira viagem, naquele trecho, em máquina a diesel. Mais taludo, ao começar as lutas com as letras, muito fora a São Leopoldo, entre os sete e os nove anos. Chegando a hora do ginásio, cruzara bastante entre Taquara, terra do colégio adventista e Santiago, onde a ferrovia também ocupava um lugar importante. Até como vendedor de livros, andara cruzando no rumo de Passo Fundo, Bagé e outros lugares, sempre de trem.

Mas veio a “Redentora” e os militares acharam por bem relegar os trilhos a um segundo plano. Investiram-se fortunas incalculáveis em rodovias; Odebrechts, Camargos, Correas, Mendes e muitos outros ficaram milionários e o país acabou perdendo a linha.

As “Marias-Fumaça” resfolegavam agonizantes. Algumas nem chegaram a ser substituídas pelas locomotivas a diesel; simplesmente morreram com as linhas a que serviam.

E, quando se viu, o Rio Grande já não tinha mais trem de passageiros. Em alguns trechos os trilhos permanecem, para transporte exclusivo de cargas, enquanto os vagões não se desmancham, pois as empresas privadas que compraram a tal malha ferroviária, não se incomodam em, sequer, lavar as locomotivas. Tudo indica que tirarão o último caldo das sucatas rodantes e, depois, só Deus sabe o que pode acontecer.

Mas o guri de Santa Maria e São Vicente e o adolescente de Santiago sempre que vê os trilhos de algum ramal desativado, ainda ouve a Maria-Fumaça bufando o seu “Cachaça não, café com pão. Cachaça não, café com pão.”

O homem maduro vê coxilhas riscadas pela coluna de fumaça, escrevendo o destino de muitos.

Eram pessoas que se mudavam de cidade. Namorados que se iam encontrar. Estudantes que voltavam em férias. Desprezados que caíam no mundo para esquecer o amor perdido. “Bota fogo, seu foguista, quem se amola é o maquinista. Bota fogo, seu foguista, quem se amola é o maquinista.”

Em muitos lugares as estações viraram ruínas; outras foram demolidas. Algumas poucas transformaram-se em museu, centro cultural ou qualquer outra repartição pública não tão útil ou, quem sabe, dispensável. Os trilhos sumiram e os dormentes viraram lenha dos mais desprotegidos.

E aí aconteceu que em suas andanças a trabalho, coincidentemente, chega a Carlos Barbosa bem na hora em que o trem turístico, que vem de Bento Gonçalves, também está por chegar.

O guri não resiste. Os compromissos ficam para mais tarde ou outro dia. A “Maria-Fumaça”, seu primeiro sonho profissional, está vindo. Será que no trem ainda há garçom vendendo guaraná numa enorme tiracolo de lona? Será que daqui a pouco o mesmo garçom voltará com o seu tabuleiro de balas-de-goma?

Os olhos se cravam na curva onde os trilhos prosseguem seu eterno desencontro. De lá há de sair a “Maria-Fumaça” puxando um trem cheio de gente feliz, algum que outro sofredor e, certamente, lá tem que estar um piá de cabelo cortado rente, uma franja curta, a baita cabeça para fora da janela olhando o movimento na plataforma da estação.

E lá vem ela, a “Maria-Fumaça” de minha infância.

O vento frio me corta o rosto, irrita os olhos e faz as lágrimas correrem. Também o frio me deu um nó na garganta ...

O mais dolorido, porém, é que nenhum guri parecido comigo desce do trem. Ninguém que esteja de mudança. Nenhum vendedor-viajante. Nem, ao menos, um descornado fugindo do desprezo. Apenas turistas cariocas, paulistas, nordestinos, bebendo vinho em cálice plástico e cantando a “Tarantella”, porque a novela global disse que é bonito.

Aquele trem não veio de Bento, a apenas vinte e poucos quilômetros. Veio de muito mais longe. Veio de São Paulo, de Uruguaiana, de Bagé, de São Borja, de São Luiz.

Na verdade veio de distâncias que não se medem. Veio dum país de sonhos e fantasias, onde bastava um sino de estação, um apito e uma fumaceira bem grande para deixar um guri extasiado, de tão feliz.

As lágrimas não param. A garganta segue apertada.

É o frio ...

De súbito, inexplicavelmente, sinto-me bem, até melhor do que os improvisados cantores da “Tarantella”.

Tento encontrar a causa da repentina mudança de espírito, pois eu que chorava nostálgico e melancólico, sinto-me agora tomado de uma genuína felicidade.

Só então dou-me conta de ser o único, ali, que já andou num trem daqueles como passageiro.

Não era turista, não bebera vinho, estava a trabalho, mas desci a serra, no rumo de Porto Alegre, com a alma lavada.

Porto Alegre, 14 de julho de 2000.

Ah, ia esquecendo, o mesmo guri virou candidato a vereador!

Quando criança, o piá brincava de marchar, contando:

- Um dois, um dois três! Um dois, um dois três! ...

    Foi o primeiro número que me ocorreu, no dia do registro das candidaturas.

   Como dizia Nero: "Que grande talento São Vicente vai perder, se eu não for eleito!" (Candidato não pode ser falso modesto, sempre digo ...)



domingo, 19 de agosto de 2012

Rodeio em São Vicente

Hoje deu Rodeio em São Vicente, mas o tempo não ajudou muito. Ficou num chove não molha, o que afastou boa parte do público.
Também por causa do tempo, só pude voar e fazer a foto no final da tarde, quando boa parte do pessoal já havia ido para as casas.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Êxodo Urbano


ÊXODO URBANO

Até perto dos dois anos eu era tal e qual terneiro guaxo: sempre doente. Peste daqui, peste dali, todo o mundo achando que não vingava aquele corpo esquelético, encimado por uma baita cabeça, verdadeira abóbora, sempre caída para um lado.

A teimosia do pesteado, porém, era grande e, chá disso, caldo daquilo, quando o pessoal se dá conta, o piazote está pegando viço e ameaça passar o agosto, mês do natalício da importante figura.

Tão bem estava o dito, que até puderam pensar em levá-lo para a fazenda dos avós. E aqui vai um esclarecimento: a Fazenda Bom Retiro não era, propriamente, dos avós, mas, isto sim, somente do Vovô, homem muito do corajoso, pois, quase aos oitenta anos, em terceiras núpcias, casou com minha avó de sangue, que ainda não chegara aos cinqüenta. Tal casamento, por exigências legais e herdeirais, foi feito com separação total de bens. Fica claro, assim, que continuo pelado como vim o mundo, porque da tal fazenda só herdei a saudade.

Ele, o Vovô, chamava-se Donato Dornelles de Quadros e, ainda que sendo meu avô apenas por afinidade, nos adotamos mutuamente. Eu, porque não conhecera nenhum avô consangüíneo e ele, porque eu era o vivente humano mais novo da fazenda.

Mas voltemos à minha ida para a campanha:

Era um toco de sobreano quando me vi na rodoviária de Santa Maria, embarcando num ônibus da Empresa São Pedro, rumo à Palma, umas duas léguas e meia antes de São Vicente do Sul, que por aquelas épocas se chamava General Vargas.

O ônibus era um daqueles focinhudos, Fargo ou coisa parecida, com bagageiro no toldo. Num tapa saiu da cidade e entrou na estrada, tentando desviar dos buracos, embalando nos lançantes para, gemendo, tentar a melhor contra as subidas.

Tanto gemeu, tossiu e fez força que, lá pelas tantas, entregou a rapadura. Ficamos, assim, no meio do campo, com um sol de rachar as idéias, esperando que o motorista com seu boné preto, de quebra-sol envernizado, conseguisse pôr a geringonça a funcionar.

Aquele calorão me deu uma baita sede. Abri os tarros. Minha irmã Maria, apenas nos seus doze anos, ficou sem saber o que fazer diante do meu berreiro, até que um senhor se ofereceu para procurar água em alguma casa. Caminhou um bocado até conseguir, mas, parece que adivinhando, foi ele apontar na curva com uma vasilha cheia de água fresquinha, recém tirada do poço e o motor, depois de muita furungação e xinga, deu sinal de vida.

Tomei minha água e recomeçamos a gemedeira. Paramos na casa para devolver a vasilha e prosseguimos despachando terra, devagar, mas firmes.

Chegamos a São Pedro do Sul. Tomei uma garrafa de Cyrillinha na Rodoviária e não me acalmei enquanto a Maria não comprou outra para levar junto até o fim da viagem. Sabia eu lá quando é que aquela gaiola gemedeira ia encrencar de novo?

Heroicamente fomos avançando. Cada vez mais perto do destino. Eu, tentando de tudo quanto era jeito botar a cabeça para fora, o que mostrou-se impossível por causa das grades nas janelas.

Dê-lhe passar sanga, coxilha, gado, cavalos, peões e bolichos.

Quase me borro de susto quando, de repente, me vejo nas alturas, olhando apavorado as águas que passavam lá embaixo: era a ponte do rio Toropi.

Mal atravessamos a Maria falou:

- Aqui começa a fazenda.

Apareceu uma reta em terras de várzea, quase uma légua. O fim dela dava numa subida em cujo topo ficava a Encruzilhada da Mata e o bolicho do Franchi. Mais umas quinhentas braças e vinha a entrada da Bom Retiro.

Um próprio nos aguardava com um cavalo a cabresto.

Fui colocado na montaria, à frente, segurado pela irmã, para evitar tombo.

Teríamos que cavalgar mais ou menos um quarto de légua. Seguimos pelo corredor, passando pelas mal-assombradas tunas-rosas, onde, diziam, um tropeiro morrera crivado de espinhos, numa disparada de cavalo. Muito sujeito valente não passava ali depois do Sol posto, pois a alma penada costumava dar umas incertas. Falavam também que carecia de se ter muito cuidado com os espinhos. Espinho de tuna, se não fosse tirado imediatamente e por inteiro, começava a andar pelo organismo do vivente, até alcançar o coração. Aí, adeus gaúcho.

Como ainda era dia, passamos as tunas sem sermos molestados pelo fantasma-ouriço, atravessamos um matinho de maricás, rodeamos as mangueiras pelo lado do Minuano e chegamos.

O que mais dava na vista, para quem chegava, era um enorme cinamomo. Atrás dele, a casa principal e, à esquerda desta, a Casa Velha, grudada à qual estava o galpão-do-fogo onde a peonada tomava mate, contava causos, arranhava um violão, peidava, e, às escondidas, bebia e jogava pife, porque o vovô Donato era adventista-do-sétimo-dia e não gostava de cachaça e jogatina. Pegados ao galpão-do-fogo vinham a carpintaria, o galpão dos jiraus e, finalmente, o de tirar leite, que estábulo não é palavra para gaúcho usar.

Fiquei meio embasbacado com tudo aquilo, mas não prolonguei muito minha atenção porque a Cyrillinha não fora bebida ainda. O melhor a fazer, então, era amarrá-la dentro dum balde e deixar um bom tempo no poço, gelando.

Depois da janta me deram a minha preciosa garrafa, o que foi um erro. Como estava cansado da viagem e de ver tanta novidade numa tocada só, fui dormir muito bem preparado para uma senhora mijada na cama.

Que não falhou.



   Esta crônica faz parte do livro "Lembranças de Guri", de minha própria autoria, escrito por mim próprio, com orientação de mim mesmo, etc.
   O livrim tem 47 "causos' dum guri medonho de aprontador.
   Compre por apenas 10 pilas no escritório do dito advogado e corretor Vilsom Barbosa, em cima da lotérica, defronte à prefeitura, das duas às seis da tarde.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Nova Sede

Esta é a faixa que ficará ao alto da fachada da sede da ALBATROZ FOTOS, na rua Principal, em cima da Lotérica, defronte à Prefeitura. Aqui não se usa nome de rua e número. 

domingo, 12 de agosto de 2012

Falta Um



Vilsom Jair Barbosa

Um homem meio calado;
Índio meio introvertido;
Sem estudo, mas sabido,
Pois foi na vida escolado,
Na Bíblia alfabetizado.
De memória prodigiosa,
Embora curto de prosa,
Com burrice, impaciente
No retruco, inteligente.
Seu nome: Hilário Barbosa.

Dizem que sou o espelho,
Quase igual na aparência.
Tomara que na consciência,
Eu seja igual ao meu velho.
Sempre um sábio conselho:
"Só se levanta quem cai."
O tempo passa e se vai,
A gente ganha experiência;
Como é doída esta ausência;
Que falta me faz meu pai!

Palma 12 de agosto de 2012.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Largas Horas



Largas Horas

E todo o velho será chorão, decretou-se em tempos imemoriais.
E todo o verdadeiro pai sentirá o peso da saudade e da ausência.

Muitas vezes o poeta plagia nossas emoções, dores e alegrias. Quantas e quantas vezes o artista diz exatamente o que diríamos. Todos somos artistas, mas quase todos temos vergonha de ser.

Volmir Coelho com seu "Poema Rabiscado" consegue expressar com exatidão o que um pai sente pelo filho ou filha.

Cada vez que ouço, não tem como escapar: as lágrimas rolam, rolam, rolam.

E me prende a imensa vontade de voltar quase trinta anos no tempo.

Andava este artista, fotógrafo e chorão pelos distantes campos do Rio Grande, quando em Porto Alegre uma guriazinha esperava com ansiedade o dia de seu quarto aniversário.

Chegado o tão esperado aniversário, ainda andava seu pai envolvido com fotos e vendas.

Diz a mãe que desde cedo, quando havia barulho de elevador parando no andar ou passos no corredor, lá ia o toquinho de gente abrir a porta para abraçar o pai.

E o pai vendendo, viajando, fazendo das tripas coração, para poder chegar o mais cedo possível.

Na capital a alemoazinha plantada junto à porta, sem desistir da espera.

- Manhê, agora acho que é ele! - exclamava feliz.

E os passos não paravam diante da porta e iam rumo a outro apartamento.

A mãe, prevendo a possibilidade da não chegada por imprevistos, quem sabe até por eventual irresponsabilidade do pai - coisa que não era do feitio dele - mas, sempre tem uma primeira vez, alertava:

- Minha filha, o papai está viajando lá longe. Pode estragar o carro, acontecer qualquer coisa que não deixe ele vir. Não precisa ficar o tempo todo perto da porta.

A resposta era incisiva:

- Eu sei que ele vem. Eu conheço meu pai! Hoje é meu aniversário e eu tenho certeza de que ele vem!

Na porta continuava.

E o cantor repete "Largas horas junto à porta a me esperar!"

A Loirinha de plantão, certa de que conhecia o pai e que ele viria.

Meio-dia - nada.

A menininha esperando.

Três horas - nem sinal do pai.

"Largas horas junto à porta ..."

Seis horas, o dia terminando e o pai ausente.

A ansiedade acelerando um coraçãozinho confiante.

- Eu conheço meu pai!

A noite chega, o dia para uma criança quase terminando. O aniversário e o bolo esperando. O pai bem longe.

Naquele tempo não havia celular e as ligações eram difíceis.

As primeira lágrimas rolando pelo rostinho já não tão confiante.

A mãe tentando consolar: "deve ter furado um pneu, estragado o motor do carro, mas ele está vindo." Ela também já não acreditando.

O elevador para no andar.

Passos no corredor.

"Largas horas na porta a me esperar !"

A campanhia toca.

- É ele, mãe! É ele!

"E o troféu maior é o teu sorriso!" - canta Volmir.

A arte sempre imita a vida.

As largas horas junto a porta e o sorriso. ..

Juliana, Juliana:

Perdoa esta crônica atrasada,
Que há muito me acompanha sem eu saber.

Mas que no fundo, lá no fundo de minha alma

Esperava eu voltar a ser menino.

E esperava a menininha crescer ...

São Vicente do Sul, 09 de agosto de 2012.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Balanço de um Fracasso



Balanço de um Fracasso

Vilsom Jair Barbosa

Nesta sexta-feira, 03 de agosto do ano da Graça de 2012, o escrevinhador está tornando-se um homem verdadeiramente sex.

Sexagenário!

O que fazer é que não falta. Estou em plena campanha eleitoral, disputando voto a voto uma vaga na Câmara de Vereadores, num município onde há pouquíssimo tempo, um candidato teve que ceder a vaga, pelo critério da maior idade para desempate. Diferença de um, dois votos é coisa corriqueira. E, num cenário assim, parar tudo para reflexões, pode significar a perda da eleição.

Mas, assumo, consciente e refletidamente o risco, para fazer um balanço dos meus sessenta anos de vida.

Cheguei à conclusão que sou um baita fracassado.

E provo.

Comecei cometendo o erro de nascer numa família pobre. Não me permitiram escolher pais milionários, ricos, sequer remediados. Nunca passei fome, mas que vendi revistas em rodoviária, aos sete anos, isso vendi.

Também não tive o privilégio de ter um pai com estudo. O seu Hilário Barbosa aprendeu a ler na Bíblia. Mas, por algum mecanismo de compensação, o homem sabia capítulos e mais capítulos do Livro Sagrado, de cor e salteado ...

Minha mãe empacou lá pela quarta série; portanto, além de pobres, ambos sem preparo intelectual.

O cenário do fracasso estava preparado desde o início.

Para não decepcionar minhas origens caprichei nas escolhas rumo à mediocridade.

Pulando no tempo, para não ser, também, um fracasso como cronista, depois de estudar com muito sacrifício, concluí o curso de Direito e fui ser fotógrafo. Assim, como advogado, nunca consegui pôr nenhum marginal, ladrão, assassino, estuprador ou pedófilo de novo nas ruas. Como esta clientela é a que costuma pagar bem, na minha atuação judicial, pouco troco embolsei e continuei firme no rumo traçado de não ser um homem de sucesso.
Em quase tudo o que fiz, sempre deixei passar as oportunidades de acumular bens.

E o tempo passando, passando.

E quando vi, virei um velho de sessenta anos, como diria a música do Belchior, "latino-americano, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior" .

O espelho do fracasso.

Ou não é fracassado um homem que aos sessenta, mal e mal tem onde morar, uns troquinhos ganhos suadamente para a comida, um carrinho básico, um aviãozinho teco-teco e quase nada mais?

Onde já se viu um velho correr quarenta e dois quilômetros no ano da entrada na terceira idade? Só um fracassado pode ter tempo para treinar, correr, suar tanto.

Não é um fracasso ter uma filha linda, chamada Juliana, que, mesmo havendo completado um curso superior, está comendo o pão que o diabo amassou na luta pela sobrevivência, mas não vendeu o bem mais precioso, a dignidade e a perseverança na luta pelo rumo traçado para sua vida?

É um baita fracasso, com sessenta invernos no lombo, um homem que em vez de trabalhar, brinca de fotógrafo e piloto, porque, quando a gente faz o de que gosta, não está trabalhando.

Com sessenta anos, pela primeira vez disputar uma eleição nunca foi ou será marca de êxito na vida.

Mas esta disputa está mostrando o quanto os filhos da Dona "Lurde"e do seu Hilário - o digníssimo aqui, o Paulo Rui e a Maria Cândida são unidos, atendendo ao que pediu a matriarca Ana Cândida: "Nunca se deixem dividir. Esta chácara tem que ficar nas mãos da família enquanto um membro dela ainda for vivo."

E atendendo a este chamado é que vim completar minha derrocada - morando na campanha, depois de cinquenta anos correndo mundo e morando na capital.

Vim, deliberadamente buscar o retrocesso. Vim, estudadamente, buscar a falta de ambição. Vim, por livre e espontânea vontade perseguir a falta de perspectivas de ganhos materiais.

Em minha estratégia de busca ao marasmo, à estagnação, acho que sou um sucesso ...

Um velhote de sessenta anos receber a visita de sobrinho que andava lá do outro lado do mundo e que, apesar da longa viagem de retorno da Ásia, pega um avião e vem dar um abraço no ermitão, só pode ser um desses que a vida relegou.

Receber outros sobrinhos que mal acabaram de retornar dos Estados Unidos, de longas viagens pelo Brasil, também deve ser sinal de que o dito, de tão mal na foto, merece uma última demonstração de apreço.

Ter uma esposa que renuncia a muitas coisas pessoais, para ajudar o marido prova mais uma vez o quanto o homenzinho deixou de ir para a frente, pois o normal o homem ajudar e proteger a mulher e não o contrário.

Retornar para viver no lugar onde se passou a infância e boa parte da adolescência, é outra prova cabal de que a vida foi desperdiçada.

Onde já se viu, levantar de manhã, olhar para a frente e lembrar de que naquela coxilha o cavalo "Gato" desceu em disparada, com um toco de gente, de quatro anos, agarrado nas crinas, perdendo pelego, enxergão, mas não desgrudando do flete, até que ele, o cavalo, resolveu parar no banhado, lá adiante. Banhado onde alguns anos depois, um bando de piás, com os respectivos companheiros cuscos caçavam preás a coice, bodocaço, etc.?

Qual é a graça de olhar para um pé de figueira à frente de uma tapera e lembrar dum velhinho relativamente franzino, careca, meio maniático, mas que só pelo olhar conseguia impor respeito e consideração? Um velhinho meio caduco na cabeça de alguns, mas terno e emotivo o suficiente para fazer uma "patente" especial para o tamanho do piazinho de três anos. Que aturava o gurizinho fazendo mil perguntas, no escritório da Fazenda Bom Retiro, enquanto o adulto furungava no rádio Telefunken a válvula, perseguindo as ondas, para ouvir as notícias até que um dia veia a fatídica nova do suicídio de Getúlio Vargas, o ídolo político da fazenda e redondezas.

Tem que ser fracassado para viver num lugar de horizontes largos, de gado berrando, de bugios com seu ronco na Restinga, de tarrã gritando num final de tarde, chamando a companheira.

Não eu não fui à Europa. Tampouco à América do Norte.

Somente andei pelo Brasil, pelo Rio Grande.

Só um fracassado pode ter andado por sua terra natal a pé, vendendo livros, indo duma cidade à outra, aos treze anos.

Os privilégios que a vida me outorgou, permitiram conhecer os mesmos lugares, depois, dirigindo e pilotando avião.

Este velho Rio Grande eu tenho o privilégio de conhecer quase  como a palma da mão. Dá para saber, em alguns lugares onde está o carreiro das formigas.

E, se existe algum lugar para ser feliz, é este, que não troco por nenhuma Paris, Nova Iorque ou algo parecido.

Sessenta anos!

Pobre de pilas! Nem vereador consegui ser até agora. Não sou famoso. A minha mulher não é modelo, atriz rica ou socialite.

Que baita azarão de cancha reta é que fui sair.

Ah, mas agora me lembrei que daqui a pouco vou dar uma corridinha básica, para manter a forma, que a maratona de 2013, com seu desafio de 42 km me espera.

Ia esquecendo que meus irmãos, antes de viajarem, passaram o tempo todo me dando dicas sobre estratégias de campanha e, colocando a mão no bolso, para ajudar.

Também ia esquecendo que as mulheres que amei antes da que amo agora, seguiram rumos diferentes, mas são minhas amigas. Sinal de que não devo ser assim, uma pessoa de todo má.

Sessenta anos e a conta bancária meio magra.

Sessenta anos de modestas roupas, carros e aviões.

É um fracasso, mesmo. Onde já se viu passar no vestibular para Direito numa Universidade Federal e depois deixar o diploma pendurado só porque o desafio tão ou mais difícil, à época, de conseguir o brevê de Piloto Privado me atraiu?

A gente vê cada uma ...

Bem, passaria uma semana comprovando o quanto fracassei.

Mas, no frigir dos ovos, cheguei a conclusão de que quando for desta para outra, o Céu vai ter que ser muito, mas muito bom, porque, se não for, peço demissão do cargo de anjo, compro uma passagem de volta para a Chácara e quero ver me atraírem lá para cima de novo ...

Os meus sessenta foram comemorados com uns dias de antecedência e, por ironia da vida, exatamente no meu aniversário estou sozinho na Chácara, fazendo um balanço do quanto fracassei.

Mas me perguntem quem eu gostaria de ser na próxima encarnação:

A resposta pronta, curta, enfática, sempre será:
- Vilsom Jair Barbosa!

"Ah, e ainda por cima bom escrevinhador ..."

Por isso, altruisticamente, deixo o sucesso a quem interessar possa.

Palma - São Vicente do Sul, 03 de agosto de 2012.