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domingo, 26 de agosto de 2012

A Longa Viagem da Maria Fumaça


A LONGA VIAGEM DA “MARIA-FUMAÇA”.




Com dois anos fizera a viagem de sua vida numa Maria-Fumaça, de Santa Maria a São Paulo.

Depois desta cansativa e deslumbrante aventura já viajara muito. Conhecera o Rio Grande de canto a canto, a pé, vendendo livros; de carro, fazendo propaganda junto a médicos; de avião, quando começara a trabalhar com fotografia aérea. Não fora a lugares muito distantes, mas passara um bom tempo da existência cruzando mundo; entretanto, nem as viagens já feitas, nem qualquer outra, por mais longa ou charmosa que venha a ser, conseguirão roubar o lugar daquela aventura fumacenta.

Sua terra, Santa Maria, era cortada pelos constantes apitos do Fronteira, do Serra e do Paulista, chegando ou saindo. Mesmo na fazenda, lá na Palma, distrito de São Vicente, em dias calmos era de se ouvir os apitos na Estação da Mata e no rumo de Taquarixim, com o eco repetindo-se pelos cerros.

E a fumaça do trem subia, mostrando exatamente onde iam as pessoas mais felizes do mundo. Mas feliz, feliz mesmo, era o maquinista, um homem super-importante, que tinha nas mãos o poder de fazer aquele monstro andar, levando cargas, pessoas e bichos através de campos, cerros e rios. Isso todos os dias, sem pagar passagem e, por cima, ganhando salário. Ele, o guri, de tanto que gostaria de ser um maquinista, trabalharia de graça, só pelo gosto, como diziam os da campanha.

De trem fora a Uruguaiana, sendo um dos privilegiados passageiros a usufruírem da primeira viagem, naquele trecho, em máquina a diesel. Mais taludo, ao começar as lutas com as letras, muito fora a São Leopoldo, entre os sete e os nove anos. Chegando a hora do ginásio, cruzara bastante entre Taquara, terra do colégio adventista e Santiago, onde a ferrovia também ocupava um lugar importante. Até como vendedor de livros, andara cruzando no rumo de Passo Fundo, Bagé e outros lugares, sempre de trem.

Mas veio a “Redentora” e os militares acharam por bem relegar os trilhos a um segundo plano. Investiram-se fortunas incalculáveis em rodovias; Odebrechts, Camargos, Correas, Mendes e muitos outros ficaram milionários e o país acabou perdendo a linha.

As “Marias-Fumaça” resfolegavam agonizantes. Algumas nem chegaram a ser substituídas pelas locomotivas a diesel; simplesmente morreram com as linhas a que serviam.

E, quando se viu, o Rio Grande já não tinha mais trem de passageiros. Em alguns trechos os trilhos permanecem, para transporte exclusivo de cargas, enquanto os vagões não se desmancham, pois as empresas privadas que compraram a tal malha ferroviária, não se incomodam em, sequer, lavar as locomotivas. Tudo indica que tirarão o último caldo das sucatas rodantes e, depois, só Deus sabe o que pode acontecer.

Mas o guri de Santa Maria e São Vicente e o adolescente de Santiago sempre que vê os trilhos de algum ramal desativado, ainda ouve a Maria-Fumaça bufando o seu “Cachaça não, café com pão. Cachaça não, café com pão.”

O homem maduro vê coxilhas riscadas pela coluna de fumaça, escrevendo o destino de muitos.

Eram pessoas que se mudavam de cidade. Namorados que se iam encontrar. Estudantes que voltavam em férias. Desprezados que caíam no mundo para esquecer o amor perdido. “Bota fogo, seu foguista, quem se amola é o maquinista. Bota fogo, seu foguista, quem se amola é o maquinista.”

Em muitos lugares as estações viraram ruínas; outras foram demolidas. Algumas poucas transformaram-se em museu, centro cultural ou qualquer outra repartição pública não tão útil ou, quem sabe, dispensável. Os trilhos sumiram e os dormentes viraram lenha dos mais desprotegidos.

E aí aconteceu que em suas andanças a trabalho, coincidentemente, chega a Carlos Barbosa bem na hora em que o trem turístico, que vem de Bento Gonçalves, também está por chegar.

O guri não resiste. Os compromissos ficam para mais tarde ou outro dia. A “Maria-Fumaça”, seu primeiro sonho profissional, está vindo. Será que no trem ainda há garçom vendendo guaraná numa enorme tiracolo de lona? Será que daqui a pouco o mesmo garçom voltará com o seu tabuleiro de balas-de-goma?

Os olhos se cravam na curva onde os trilhos prosseguem seu eterno desencontro. De lá há de sair a “Maria-Fumaça” puxando um trem cheio de gente feliz, algum que outro sofredor e, certamente, lá tem que estar um piá de cabelo cortado rente, uma franja curta, a baita cabeça para fora da janela olhando o movimento na plataforma da estação.

E lá vem ela, a “Maria-Fumaça” de minha infância.

O vento frio me corta o rosto, irrita os olhos e faz as lágrimas correrem. Também o frio me deu um nó na garganta ...

O mais dolorido, porém, é que nenhum guri parecido comigo desce do trem. Ninguém que esteja de mudança. Nenhum vendedor-viajante. Nem, ao menos, um descornado fugindo do desprezo. Apenas turistas cariocas, paulistas, nordestinos, bebendo vinho em cálice plástico e cantando a “Tarantella”, porque a novela global disse que é bonito.

Aquele trem não veio de Bento, a apenas vinte e poucos quilômetros. Veio de muito mais longe. Veio de São Paulo, de Uruguaiana, de Bagé, de São Borja, de São Luiz.

Na verdade veio de distâncias que não se medem. Veio dum país de sonhos e fantasias, onde bastava um sino de estação, um apito e uma fumaceira bem grande para deixar um guri extasiado, de tão feliz.

As lágrimas não param. A garganta segue apertada.

É o frio ...

De súbito, inexplicavelmente, sinto-me bem, até melhor do que os improvisados cantores da “Tarantella”.

Tento encontrar a causa da repentina mudança de espírito, pois eu que chorava nostálgico e melancólico, sinto-me agora tomado de uma genuína felicidade.

Só então dou-me conta de ser o único, ali, que já andou num trem daqueles como passageiro.

Não era turista, não bebera vinho, estava a trabalho, mas desci a serra, no rumo de Porto Alegre, com a alma lavada.

Porto Alegre, 14 de julho de 2000.

Ah, ia esquecendo, o mesmo guri virou candidato a vereador!

Quando criança, o piá brincava de marchar, contando:

- Um dois, um dois três! Um dois, um dois três! ...

    Foi o primeiro número que me ocorreu, no dia do registro das candidaturas.

   Como dizia Nero: "Que grande talento São Vicente vai perder, se eu não for eleito!" (Candidato não pode ser falso modesto, sempre digo ...)



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